O fracasso da Nota Fiscal Paulista: Você tem consciência disso?
Cara, injusta e provavelmente ineficaz. Esse é o retrato do programa Nota Fiscal Paulista depois de quase 9 anos de sua criação. Ora, mas quem pode ser contra a devolução de impostos ao cidadão, que faz sua parte ao pedir nota fiscal e informar seu CPF? Caro leitor, antes de mostrar por que esse programa deveria ser modificado radicalmente ou mesmo cancelado, vou desde já deixar claro que não sou contra a ajuda do cidadão paulista no combate à sonegação. Pelo contrário. O que defendo é a racionalidade no emprego dos recursos públicos. Imposto é difícil de arrecadar, especialmente dos grandes sonegadores. Portanto, os recursos que os fiscais de tributos ajudam a trazer para os cofres públicos devem ser empregados da melhor forma possível. Infelizmente, esse parece não ser o caso da Nota Fiscal Paulista. Vamos aos motivos?
Primeiro ponto: O programa é muito caro
Em primeiro lugar, a Nota Fiscal Paulista é um programa extremamente caro. Segundo os dados públicos do programa, em 2015 os valores totais resgatados[1] foram de R$ 1,8 bilhão. Em quase 9 anos, o programa distribuiu quase R$ 9 bilhões e ainda restam R$ 5 bilhões de saldo não resgatado. É muito dinheiro. Para fins de comparação, considere que os valores resgatados no ano passado correspondem a:
– Quase os R$ 2,0 bilhões que representaram todo o orçamento da Unicamp no mesmo ano[2]. Será que os reitores das universidades públicas, professores e funcionários têm consciência disso?
– 75% de tudo o que se arrecadou em 2015 com o ITCMD[3], o imposto sobre doações e heranças, que, como qualquer fiscal estadual sabe, é um imposto de cobrança custosa. Segundo informações divulgadas pela Folha de São Paulo[4], em alguns meses de 2015 foram feitos mais autos de infração de ITCMD do que de ICMS, o principal imposto estadual. Isso sugeriu ao leitor da Folha (e sugere a você, leitor deste artigo) a dimensão do esforço feito para arrecadar o imposto de doação e herança no ano passado, que cresceu 39% em relação a 2014. Os impostos são como a água que sai de uma represa e chega à caixa d’água do governo para atender as necessidades da população. Enquanto um esforço hercúleo foi feito para encher a caixa d’água do governo com o ITCMD, uma torneirinha aberta (a Nota Fiscal Paulista) deixava sair o equivalente a três quartos do que entrou. Será que os fiscais estaduais têm consciência disso?
– Quase 4 vezes o valor total dos bônus prometido este ano (R$ 500 milhões) para os professores da rede pública de ensino. “Em razão da crise, estamos com dificuldade de dar aumento. A arrecadação caiu muito”, disse o governador há pouco tempo[5]. Lembram da controvérsia recente sobre pagar bônus ou pagar reajuste de 2,5% aos professores (em um cenário de forte inflação acumulada)? Pois é, mas mesmo em 2015 o governo pagou o “maior bônus da história”, no valor de R$ 1 bilhão[6], que correspondeu, portanto, a 55% do que foi distribuído aos felizardos na Nota Fiscal Paulista. Será que os professores da rede pública têm consciência disso?
– Todo o valor que a Sabesp deve investir em 2016 para os serviços de água, tratamento ou coleta de esgoto ou pouco mais da metade do valor do que foi investido no ano passado[7]. O valor distribuído da Nota Fiscal Paulista no ano passado também corresponde a mais de duas vezes tudo o que vai custar a transposição do Rio Paraíba do Sul para ajudar a atender o problema da água em São Paulo[8]. Será que os consumidores paulistas, especialmente os que sofreram mais com a crise da água nos últimos meses, têm consciência disso?
– O valor para a construção de 450 postos de saúde[9] ou nada menos do que o custo anual de manutenção de mais de 1.000 creches, suficientes para atender mais de 200.000 crianças pobres[10] e zerar, com folgas, todo o histórico déficit de vagas da cidade de São Paulo. Será que a população mais carente tem consciência disso?
– O valor dos repasses de ICMS recebidos em 2015 pelas prefeituras de Campinas, Guarulhos e Santos somados[11]. Será que os prefeitos têm consciência disso?
A essa altura, espero que esteja claro ao leitor que, quando se trata de recursos públicos, que são escassos, é essencial entender qual o melhor uso possível diante de tantas necessidades que competem por atenção e dinheiro. Antes de condenar totalmente o programa, entretanto, sejamos ponderados. Pode ser argumentado que a maioria absoluta dos programas públicos custa caro. Gerir hospitais ou um sistema de escolas não é barato, especialmente em São Paulo, um estado que tem as dimensões de um país. Então o critério do custo, isoladamente, não é suficiente para condenar ou referendar um programa público. Todavia, é preciso que fique bem claro para o leitor a magnitude do custo da Nota Fiscal Paulista. Ponto a guardar para o restante do artigo: o programa é muito caro.
Segundo ponto: O programa privilegia quem menos precisa
Em segundo lugar, trata-se de um programa injusto. Enquanto no ano passado as associações filantrópicas e entidades similares que o integram tiveram direito quase R$ 146 milhões, mais de R$ 1,5 bilhão foi disponibilizado a pessoas físicas. E aqui reside um grande problema ético do programa. Considerando que os recursos públicos são escassos, que há enormes deficiências sociais clamando por atenção e recursos, é justo que um programa público privilegie as pessoas de maior renda, que são as que mais consomem? O pesquisador William Smith, especializado no estudo de programas destinados a mudar comportamentos de interesse social, lembra que esse tipo de programa, para ser considerado ético, precisa ser justo com todos os segmentos sociais[12].
Você, que é assalariado e depende da saúde ou da educação pública, ou você, que, com sorte, consegue pagar plano de saúde porque não confia na qualidade da saúde pública e paga escola particular pelo mesmo motivo, veja bem a lista dos tipos de comércio que dão mais retorno de créditos da Nota Fiscal Paulista, compilada pelo portal da Revista Exame[13]:
- Loja de roupas
- Loja de calçados
- Joalherias
- Lojas de acessórios
- Restaurantes, bares e lanchonetes – especialmente as grandes redes
- Lojas de cama, mesa e banho
- Pet shops
- Óticas
- Móveis
Agora, pergunte-se quem tem mais condições financeiras para gastar valores elevados nesses tipos de lojas. É óbvio que as classes mais altas são privilegiadas pelo programa: são profissionais que ganham mais, gastam maiores volumes de dinheiro com consumo, compram com mais frequência, compram produtos mais caros, vão a restaurantes mais sofisticados, compram joias (sim, caro leitor, você leu direitinho, joias!). Não apenas isso, mas, na média, lojas em grandes centros comerciais (shoppings, bairros de alto padrão) têm tipicamente maior probabilidade de serem formalizadas do que aquelas localizadas em periferias e nos rincões do estado.
E não é só isso, como dizia o esquete das saudosas Organizações Tabajara! Se o afortunado consumidor de classe alta ou de renda média alta comprar automóveis com frequência, terá a sua disposição um grande número de bilhetes para concorrer aos sorteios mensais do programa (a cada R$ 100,00 em compras, 1 bilhete é gerado). E os sorteios foram aumentados este ano. É uma pena que a imprensa ou o governo não divulguem com tanto alarde com quantos bilhetes concorreram os ganhadores dos superprêmios. Por exemplo, em dezembro do ano passado a ganhadora do prêmio de R$ 1 milhão tinha gasto pelo menos R$ 7.300,00 em notas com CPF, ganhando 73 cupons[14]. Em dezembro de 2013, o ganhador do R$ 1 milhão tinha gasto cerca de R$ 31.900,00. O segundo colocado (prêmio de R$ 120 mil) tinha gasto pelo menos R$ 44.200,00[15]. É evidente também que há diversos ganhadores que concorreram com poucos bilhetes. Mas ainda que o programa possa ter pulverizado bastante a chance entre todos os concorrentes, é inegável que é socialmente injusto o fato de um comprador de automóvel de luxo ter, antes do sorteio, uma chance de ganhar prêmios várias dezenas de vezes maior do que o consumidor de baixa renda que acredita no programa. Os prêmios, não custa reforçar, recentemente foram aumentados para quase R$ 20 milhões. Por mês. Portanto, além de caro, o programa é socialmente injusto – ou, como os economistas gostam de dizer, regressivo.
Aqui um parêntese. Parece ser uma maldição brasileira a existência de programas que favorecem quem menos precisa. Por que o gasto social no Brasil acaba, via de regra, favorecendo quem menos precisa? Se há uma característica das políticas públicas brasileiras que parece se repetir nos diversos níveis de governo (e independentemente de partido político) é a falta de foco nos menos favorecidos. Nossos programas têm uma espécie de natureza fractal: Mude a escala de análise e você verá a mesma marca. Assim, nossa tributação penaliza os mais pobres, nossos gastos sociais privilegiam os que menos precisam, a maioria dos nossos programas sociais traz o mesmo DNA da injustiça social. Bem-vinda ao clube, Nota Fiscal Paulista! Fecha parêntese.
Terceiro ponto: Aquele que é fundamental.
Mas, ainda que seja caro e injusto, o programa poderia continuar existindo se funcionasse de fato no combate à sonegação, isto é, se os recursos adicionais que ele ajudasse a trazer para os cofres públicos fossem mais do que suficientes para cobrir seus custos. Mas é aqui que a vaca torce o rabo[16].
Os estudiosos da tributação trabalham com estimativas diversas para o volume de sonegação no comércio varejista. Como esse setor é muito pulverizado e a fiscalização é custosa, há um incentivo para a sonegação muito grande. O ideal seria que o governo paulista calculasse o chamado “gap tributário” (o volume de imposto sonegado e não cobrado), que possibilitaria avaliar melhor não apenas o resultado da Nota Fiscal Paulista, como também a eficácia do Fisco ao longo dos anos. Mas o ponto mais importante (e preocupante aqui) é que o governo paulista, ao criar o programa, parece ter agido com base apenas no bom senso e no alegado sucesso de iniciativas similares[17]. O bom senso, porém, nem sempre é um bom conselheiro em se tratando de políticas públicas, como afirmam diversos pesquisadores de áreas como economia comportamental e gestão.
Além disso, não parece haver avaliações independentes, periódicas, metodologicamente sólidas e públicas. Tudo se passa como se a Nota Fiscal Paulista fosse um tremendo sucesso. Alguns governos, mundo afora, enxergando essa limitação e o enorme potencial de desperdício de recursos públicos, passaram a primeiro testar se a adoção de uma política pública traz o resultado esperado ou não[18]. Um exemplo é a Grã-Gretanha, que criou um órgão apenas para testar cientificamente novas iniciativas de gestão pública[19].
O prêmio Nobel de Economia e pai da economia comportamental Daniel Kahneman, refletindo sobre a tendência humana a tomar decisões ruins, apontou que o pior defeito que existe em decisões importantes é o excesso de confiança… no próprio bom senso. O famoso economista comportamental Dan Ariely vai na mesma linha e aponta que a falta de experimentos e o excesso de confiança na intuição estão por trás de decisões ruins no mundo dos negócios e na sociedade como um todo. Não é à toa que sobram programas mundo afora que fazem sentido superficialmente, mas que não resistem a uma análise técnica mais sólida. O exemplo mais dramático para mim (dentre muitos outros) é o programa Scared Straight nos EUA. Ao expor jovens infratores a aspectos reais da vida na prisão – essa é a lógica por trás do programa – a ideia era assustá-los o suficiente para que eles pensassem duas vezes antes de progredir na vida de crime[20]. Faz sentido, não? A vida na cadeia é dura e aparentemente sem qualquer glamour. Mas o resultado? Sete estudos experimentais mostraram que, na média, um adolescente no programa tem uma chance 13% maior de cometer crimes depois de exposto a ele. Cada dólar gasto com o programa gera custos (isso mesmo, custos!) de mais de 200 dólares em termos de crimes e gastos de encarceramento. O pior não é isso: o programa continua existindo e é elogiado pela mídia!!! Como diz o pesquisador Richard Nisbett, isso ocorre porque os políticos tendem a confiar nas suas intuições em vez de basear suas decisões em pesquisas científicas sérias. O único remédio para evitar esse tipo de erro, extremamente comum em se tratando de políticas públicas[21], é a adoção de experimentos para testar políticas públicas, especialmente antes de comprometer uma montanha de recursos e alterar os sistemas sociais, muitas vezes de forma definitiva. Exemplos de programas públicos caros e inúteis são inúmeros mundo afora.
Mas vamos falar de dois estudos acadêmicos sérios feitos sobre a Nota Fiscal Paulista[22][23]. Em primeiro lugar, eles chegaram a conclusões de certa forma contraditórias. Um deles considerou que o aumento de receitas informado pelo comércio varejista após a introdução do programa se refletiu diretamente no maior pagamento de impostos, mas não considerou o efeito da substituição tributária, uma medida que foi introduzida ao mesmo tempo e que pode ter influenciado no aumento da receita informada e/ou na diminuição do imposto pago (mais sobre isso em um instante). Essa é uma grande limitação. Por sua vez, o outro estudo, de Enlinson Mattos e seus colegas da FGV, chegou à conclusão que a faixa possível de resultados para a Nota Fiscal Paulista vai de um prejuízo para o Estado a um acréscimo desprezível de arrecadação, insuficiente para cobrir os custos de participação[24] e de gestão. Porém, ambos os estudos consideraram dados até 2010 ou 2011. Isto é, não há, na literatura acadêmica pesquisada, nenhum estudo que considere os últimos anos, nos quais se assistiu a uma mudança dramática na natureza da tributação paulista e brasileira, especialmente por causa da substituição tributária.
Vou explicar isso melhor. Ao mesmo tempo em que o governo do estado procurava estimular o cidadão a pedir nota fiscal e, com isso, combater a sonegação, ele colocou em prática uma mudança maciça na tributação do ICMS, a substituição tributária. Trata de medida que a maioria dos especialistas na área considera como ruim e que só existe ou existiu na escala hoje existente em países bem atrasados[25]. Esse assunto demanda um artigo apenas para ele, mas ele é importante no contexto da Nota Fiscal Paulista porque, ao mesmo tempo em que o governo prometia devolver até 30% (hoje 20%) do imposto recolhido no varejo aos consumidores que demandavam a nota com CPF, ele simplesmente desidratou o imposto a pagar da boa parte das mesmas lojas. Como foi isso? Por exemplo, o imposto do café que você compra no supermercado não é recolhido pelo supermercado, mas antecipadamente pela indústria. E isso passou a valer para uma infinidade de produtos. O ponto é que, enquanto o governo acenava com devolução do imposto em uma mão, na outra ele reduzia drasticamente o valor do imposto passível de ser devolvido, também com o declarado objetivo de combater a sonegação. Sobraram apenas os tipos de lojas indicados acima, que vendem produtos que escaparam da substituição tributária.
Além da falta de estudos independentes conclusivos e atualizados, há aspectos do programa que sugerem que ele não pode ter um custo/benefício que justifique sua continuidade. Como já reconhecido nos estudos feitos, as lojas que mais emitem as notas com CPF muito provavelmente são as que já agiam, no geral, corretamente antes da introdução da Nota Fiscal Paulista. Faria mais sentido se o estado premiasse a fiscalização de varejistas com maior propensão à sonegação e esses setores geralmente tendem a não ser grandes redes, que são mais formalizadas.
Um outro ponto importante, apontado nos estudos acadêmicos, é o fato de o programa provavelmente depender para seu sucesso financeiro do esquecimento ou falta de conhecimento de boa parte de seus usuários potenciais. Parte substancial dos créditos gerados provavelmente jamais vai ser sacada. Se o programa dá lucro (o que parece pouco provável), daria menos lucro nesse caso; se dá prejuízo, este seria bem maior. Incrivelmente, conforme a figura abaixo, o programa jamais superou a barreira de adesão representada, grosso modo, por um terço das notas emitidas.
Não é de se estranhar que o nível de adesão seja baixo. Como a literatura acadêmica sobre mudança de comportamentos está cansada de mostrar, diversos fatores em conjunto explicam o sucesso da adoção de comportamentos de interesse social. Mas a mudança de comportamento pretendida pelo programa Nota Fiscal Paulista é prejudicada porque:
- As recompensas são distantes e difusas. Nenhum consumidor tem uma ideia precisa de quanto vai receber e quando terá essa informação (que costuma levar meses). Um processo que na psicologia é conhecido como mapping é dificultado ao extremo. Se eu economizo no meu consumo de água, eu sei que terei um desconto na minha conta de água (ou tinha, pois acabou). É fácil ligar o comportamento à sua consequência. Na Nota Fiscal Paulista, esse processo é bem mais opaco.
- O comportamento (pedir ou aceitar colocar o CPF na nota fiscal) está associado com lembretes feitos pelas operadoras de caixa de grandes redes ou de empresas cujos sistemas comerciais já embutiram a previsão para a Nota Fiscal Paulista. Seria interessante saber qual o nível de adesão nos ramos do comércio em que esse lembrete não é feito. Se quase dois terços das notas fiscais são emitidas sem CPF ou CNPJ, muito provavelmente o consumidor não está demandando notas fiscais espontaneamente na proporção que seria desejável.
- A chamada prova social parece ter pouco efeito. Muito do comportamento humano é resultado de imitação e da percepção de qual é o comportamento predominante. Via de regra (à exceção de locais com fila), o consumidor não observa outros consumidores pedirem nota com CPF.
- Não há na Nota Fiscal Paulista elementos que costumam alavancar programas de recompensas tipicamente empregados por empresas, como reconhecimento e progressão de status. O relacionamento é distante (contábil, eu diria).
- Pessoas com um nível educacional mediano conseguem entender o programa, bem como acompanhar e resgatar seus créditos. Mas será que isso acontece com os mais pobres e de menor instrução? Volto aqui novamente ao pesquisador William Smith, que, em um artigo provocativo, ressalta que os pobres também têm direito a participar de programas que sejam fáceis e não burocráticos[26]. Basta dizer que uma percentagem bastante pequena de domicílios possui acesso à Internet no Brasil na medida em que se move, na escala social, em direção à classe E[27].
O que leva as pessoas a aderir ao programa e manter sua participação? Conforme pesquisa que fiz há alguns anos, a adesão ao programa parece depender de uma combinação dos seguintes fatores:
- O consumidor percebe o ato como uma manifestação de sua identidade social.
- Para o participante, qualquer dinheiro que vem de volta do Estado é percebido como um retorno dos impostos mal empregados e percebido como “melhor do que nada”.
- Expectativa de altos prêmios.
- Hábito. Na medida em que o consumidor se habitua a responder “sim” à pergunta “quer CPF na nota?”, independentemente dos motivos originais que o levaram a aceitar a participação, ele tende a manter seu comportamento.
Vale a pena manter a Nota Fiscal Paulista?
Ainda assim, o programa gera quase dois terços das notas fiscais sem identificação. Vale a pena mantê-lo?
Em se tratando de recursos públicos gigantescos, em se tratando da dúvida razoável sobre sua efetividade, em se tratando da sua regressividade, fica aqui, primeiramente, um apelo ao Sinafresp para que contrate pesquisadores independentes para atualizar o estudo sobre a eficácia do programa. Fica também um apelo para o governo paulista fazer o mesmo.
Por que o governo insiste em manter esse programa? Talvez seja por inércia. Talvez porque o programa tenha uma boa imagem junto ao público, que não tem ideia de sua efetividade. Talvez o governador Alckmin não queira criar problemas com o criador do programa, seu predecessor. Talvez não considere a possibilidade de o programa não ser o sucesso que se apregoa. Talvez não queria águas agitadas na mídia, porque certamente haverá quem ache esse programa um estrondoso sucesso mesmo sem haver evidência de primeira linha. Talvez uma combinação de tudo isso.
O ponto é que nenhum gestor público racional, preocupado com o bem público e diante do quadro descrito neste artigo, deveria se furtar a pelo menos encomendar avaliações técnicas independentes, preferencialmente estudos econométricos bem sólidos[28]. Se ficar comprovado que o programa é um sucesso, contem comigo para mudar minha avaliação e apoiá-lo. Caso contrário, está na hora de repensá-lo radicalmente, seja para aproximá-lo de um modelo de incentivo muito mais econômico, como a Fatura da Sorte portuguesa (que sorteia carros), seja para devolver dinheiro apenas a entidades filantrópicas[29], seja para focar em segmentos específicos (como crianças e adolescentes, como no caso da antiga Paulistinha), seja para eventualmente extingui-lo. E nem se diga que este autor é contra programas do tipo; pelo contrário.
Na medida em que a tecnologia avança (por exemplo, com a introdução do S@T Fiscal no varejo, que é uma espécie de Big Brother em tempo real), favorecendo o trabalho de fiscalização do ICMS, faz pouquíssimo sentido que esse programa continue existindo da forma como está configurado e custando tanto. Se as suspeitas de ineficácia se comprovarem, o fim do programa pode apontar uma luz para o governo, mostrando que há sim dinheiro no orçamento para ajudar a fazer a travessia neste ano de economia complicada.
Por fim, há um aspecto fundamental no modelo mental dos responsáveis pela criação da Nota Fiscal Paulista que usualmente passa despercebido a gestores, jornalistas e ao público em geral. Por que o Estado tem de devolver dinheiro de impostos quando o correto seria que devolvesse serviços minimamente decentes para sua população com o suado dinheiro arrecadado com os impostos? Você, leitor, tem consciência da importância disso?
Notas
[1] As informações públicas do programa juntam na mesma rubrica valores resgatados e cancelados, sem discriminá-los. Presume-se neste artigo que os valores cancelados são proporcionalmente bem pequenos. O autor se compromete prontamente a revisar os valores e percentuais citados no artigo se tiver acesso aos valores cancelados, bem como a revisar quaisquer valores para os quais haja informações de melhor qualidade.
[2] http://www.aeplan.unicamp.br/proposta_orcamentaria/unicamp/pdo_unicamp_2016.pdf
[3] http://www.fazenda.sp.gov.br/relatorio/
[4] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/02/1741682-arrecadacao-com-imposto-sobre-doacao-e-heranca-cresce-39-em-sp.shtml
[5] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/03/92-dos-professores-preferem-bonus-aumento-diz-gestao-alckmin.html
[6] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/04/1756439-gestao-alckmin-volta-atras-e-agora-vai-pagar-bonus-para-os-professores.shtml
[7] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/04/sabesp-e-autorizada-acabar-com-bonus-e-multa-da-agua-em-maio.html
[8] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/01/edital-da-obra-de-transposicao-deve-ser-lancado-na-sexta-diz-alckmin.html
[9] Estimados a R$ 4 milhões cada um, conforme orçamento da Prefeitura de São Paulo (ver http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/noticias/?p=188527)
[10] Cálculo feito considerando, com ajustes, os valores do programa Brasil Carinhoso (http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/04/mec-define-custo-por-aluno-na-creche-e-pre-escola-para-2016.html). Por conservadorismo, considerou-se um custo anual por aluno de R$ 9.000,00.
[11] https://www.fazenda.sp.gov.br/RepasseConsulta/Consulta/repasse.aspx
[12] Ethics and the Social Marketer (2001).
[13] http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/como-ganhar-mais-dinheiro-com-a-nota-fiscal-paulista
[14] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/12/moradora-de-jandira-leva-r-1-milhao-em-sorteio-da-nota-fiscal-paulista.html
[15] http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/morador-do-litoral-leva-r-1-milhao-da-nota-fiscal-paulista
[16] A menção à vaca está relacionada com as críticas feitas pelo Sinafresp aos benefícios fiscais concedidos ao setor de frigoríficos.
[17] A primeira iniciativa do Brasil ocorreu no município de Angra dos Reis-RJ. Em municípios em que a cobrança de ISS é virtualmente inexistente, um programa desse tipo tem potencial para aumentar sim a arrecadação.
[18] Usando o principal método científico, que é o de experimentos controlados.
[19] http://www.behaviouralinsights.co.uk/
[20] Nisbett, Richard (2015). Mindware – Tools for Smart Thinking. Penguin Books.
[21] Nisbett lembra que a regra geral que deveria orientar gestores públicos nesses casos é: ATTBW – Assumptions Tend to Be Wrong (pressupostos tendem a estar errados).
[22] http://www.scielo.br/pdf/rbe/v67n1/05.pdf
[23] http://siteresources.worldbank.org/INTMACRO/Resources/Joanapaper.pdf
[24] O estudo de Naritomi calculou os custos sociais de participação no programa. Ver referência anterior.
[25] A substituição tributária altera a própria natureza do ICMS, um imposto sobre o valor agregado que incide em cada fase da produção e comercialização na base da compensação de créditos e débitos, transformando-o em um imposto de fase única.
[26] Why Don’t We Ever Ask What Rich People Need? (2007).
[27] http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/06/1476690-numero-de-brasileiros-que-usa-a-internet-pelo-celular-mais-que-dobra-em-dois-anos-diz-pesquisa.shtml
[28] Considerando que a única ferramenta científica para provar causa e efeito – os experimentos – não pode ser aplicada ao caso.
[29] Melhor seria que o repasse às entidades filantrópicas fosse feito de forma mais transparente, por meio do orçamento.