George Orwell, em seu clássico Animal Farm (Revolução dos Bichos) tratou, com muita precisão, da transformação que o poder exerce nos grupos que se consideravam outrora dominados. De fato, as evidências científicas confirmam o que Orwell descreveu tão bem: grupos que assumem o poder em substituição a outros – cujas práticas criticavam – tendem a reproduzir o mesmo padrão de comportamento.
Neste artigo eu gostaria de falar de um fenômeno que também tende a acometer diversos grupos sociais, em especial aqueles que dividem a gestão de uma organização. Ao falar disso, trato, portanto, de uma influência sistêmica, que vem de fora dos indivíduos. Por conta do chamado erro fundamental de atribuição (comum nas culturas ocidentais), essa influência é raramente reconhecida e, justamente por isso, é tão poderosa. Pois a tendência nossa (e aí reside a raiz do erro) é achar que os resultados da ação das pessoas ou dos grupos deve-se unicamente a fatores individuais (personalidade, valores, atitudes, crenças), quando em praticamente todas as ocasiões o que se tem é uma interação entre indivíduos e forças situacionais (incentivos, papeis, normas de comportamento esperado, pressão do tempo etc.) – e, frequentemente, com vitória das últimas na determinação do comportamento observado.
Já já digo aonde quero chegar.
Por coincidência, no mesmo período em que meu amigo Gustavo Theodoro escreveu sobre a alegoria da caverna de Platão (http://agoraaporetica.com/2014/04/28/a-alegoria-da-caverna/), a revista Exame trouxe curta entrevista com David Kelley. Fundador da celebrada consultoria IDEO e criador do igualmente celebrado método de inovação conhecido como design thinking, Kelley diz, textualmente: “As empresas vivem dentro da caverna do mito de Platão. Os executivos passam horas em frente a um computador e falam com as mesmas pessoas. Eles só veem sombras, não a realidade”.
As empresas só veem sombras, as organizações se fecham à realidade. Mas como?
Um problema, conhecido dos principais estudiosos da Administração (e pouquíssimo conhecido na prática das organizações) é o chamado groupthink, o pensamento único coletivo. Trata-se do consenso quase automático que se forma em torno de ideias esposadas por líderes da organização, que é alimentado por alguns vieses importantes. Em primeiro lugar, é uma tendência natural do ser humano se aproximar e criar laços de convivência e amizade com pessoas similares. Existe até um nome técnico para isso: homofilia. Pessoas com perfis similares tendem a manter opiniões e visões de mundo parecidas e a uniformizar suas pequenas discrepâncias. Em segundo lugar, todos nós carregamos dentro de nós aquela certeza absoluta, inabalável, de que enxergamos a realidade como ela é, de forma objetiva. Quem não comunga da mesma visão é visto por nós como enviesado ou mal informado. Esse fenômeno, largamente comprovado, também tem um nome técnico: realismo ingênuo (naive realism). Você que me lê pode até concordar friamente com isso, mas lá no fundo, lá no fundo tem a convicção de que enxerga a realidade como ela é e tem reações emocionais em relação a quem apresenta opiniões e visões distintas da sua, não é? (e, claro, eu não sou imune ao fenômeno).
Some-se à receita três vieses poderosos, pois são automáticos, não conscientes e quase incontroláveis: O viés de self-serving (interpreto a realidade da forma que me é mais favorável), o viés de confirmação (olho para a realidade com o objetivo implícito de confirmar minhas crenças e visões de mundo) e o viés de otimismo (trabalho sempre com cenários perfeitos para minhas ideias). Tem-se, então, a receita não apenas para discordâncias em nível pessoal, mas, principalmente, para o fechamento em visões coletivas, em carvernas simbólicas, em groupthink – visões que, dependendo do investimento de tempo, energia e dinheiro envolvidos, dependendo dos interesses envolvidos, têm tudo para ser solapadas pela realidade ou pela conjunto de visões de terceiros não contaminadas pelo mesmo fenômeno.
Não é à toa que a história da Administração está cheia de exemplos de empresas que faliram, produtos que sugaram investimentos milionários e não deram em nada, decisões catastróficas e, simplesmente, decisões ruins. Para quem quiser uma pequeníssima amostra, recomendo artigo recente da Harvard Business Review (por que projetos ruins são tão difíceis de matar): http://hbr.org/2003/02/why-bad-projects-are-so-hard-to-kill/ar/1
Como superar esse problema?
Há alguns caminhos simples e conhecidos dentre os quais cito alguns, pensando especificamente na gestão de entidades do terceiro setor:
– Pesquisas de satisfação frequentes (trimestrais), algo muito simples de ser feito pela Internet, de forma confiável e segura;
– Ferramentas de utilização da inteligência coletiva, como compartilhamento de desafios (banco de desafios), geração de ideias e comunidades sociais com foco em cooperação e formação de reputação;
– Overcommunication: comunicação “em excesso” – não presumir que a mera disponibilização de informações na Internet ou em jornais é suficiente;
– Estruturação de processos de decisão com foco na criação de mecanismos de “advogados do diabo” e de testes de realidade;
– Em um nível mais amplo, gestão estratégica para valer, com planejamento estruturado em definição de prioridades reais, que implicam o abandono de atividades que fazem sentido superficialmente, mas que geram pouco valor (algo sempre doloroso, não nos enganemos).
Há alguns outros “reparos cognitivos” que minimizam o groupthink, mas cuja descrição fico devendo para outra oportunidade. Mas o ponto é que, além de desejável, é possível e fácil minimizar o fenômeno, que tem consequências reais e geralmente negativas para os grupos envolvidos.