Os conceitos de direita e esquerda ainda são válidos?

Leitor, dependendo de sua idade, você talvez se lembre de pesquisa feita com congressistas brasileiros há umas duas décadas, em que a maioria esmagadora se declarava “de esquerda”. Declarar-se de direita no Brasil sempre pegou mal e mesmo quem proclamava valores liberais (caso de partidos como PL, PFL etc.) na prática portava-se como replicador das piores práticas patrimonialistas, sem preocupação com aplicação de seus supostos ideais. Ser “de esquerda” sempre foi sinônimo de preocupação com os mais pobres e era um atestado natural de bondade. Ser “de direita” sempre significou (aos olhos de quem assim se intitulava) preocupação com a pátria, com a família etc. O diálogo em termos comuns era e ainda é impossível, pois cada lado vê o outro como amoral. Depois que a “esquerda”/classe operária finalmente chegou ao poder (e aqui incluo não apenas o PT, mas também parte do PSDB), não demonstrou, na minha visão, nenhuma capacidade transformadora (ou o que, no jargão da administração, é conhecido como liderança transformadora): Aliou-se gostosamente aos donos do poder de fato, reproduziu as mesmas práticas fisiológicas e patrimonialistas; enfim, aderiu, como um Ulisses desamarrado, ao inescapável e doce canto do poder. Podem argumentar que, com a esquerda no poder, o estrato menos favorecido da sociedade finalmente teve vez (sim, teve!). Mas a ideia de um imposto de renda negativo (que germinaria no nosso conhecido bolsa-família) é uma ideia fortemente liberal, defendida por Friedman e Hayek. Saindo desse atalho e voltando aonde quero chegar: Ainda que a prática do poder tenha revelado a nudez da chamada esquerda brasileira, seu discurso foi objeto de um “retrofit” (usando um termo do mercado imobiliário). Para fazer frente ao desconforto cognitivo gerado entre ideais nobres do passado e práticas espúrias e para sustentar a permanência do poder (apostando na força de uma estória messiânica – nós, do bem, versus eles, os conservadores atrasados, o mal), temas clássico do discurso esquerdista como a luta de classes ganharam nova roupagem (em alguns casos, claramente ridícula, como a tentativa de atribuir a reação aos rolezinhos ao “racismo da elite branca”). A classificação entre direita e esquerda ainda é útil? Acredito que não. Acredito que de um ponto de vista racional, o melhor é buscar ajuda na ciência. O estudioso da psicologia da moral Jonathan Haidt construiu uma teoria que é compatível com proposições de dois grandes antropólogos especializados na mesma área (Richard Shweder e Alan Fiske) que mostra que é possível classificar grupos sociais e sociedades de acordo com a adesão desses grupos a diferentes conjuntos de valores morais universais. Essa classificação permite identificar claramente, por exemplo, que liberais e conservadores nos EUA olham o mundo e o Estado por lentes claramente distintas (que vão além da simples dicotomia individualismo x coletivismo) e que não existe, na prática, um ambiente de diálogo comum. A teoria e as evidências permitem observar claramente que existe um continuum que separa os grupos políticos e esse continuum pode ser separado grosso modo em duas metades: De um lado, estão aqueles que entendem que o Estado é o supremo mediador de todas as relações sociais e econômicas (o que no Brasil coloca no mesmo saco partidos como o PT e o PMDB, Lula e Sarney) e, de outro lado, estão aqueles que entendem que o Estado tem o papel de garantir valores supremos (família, pátria, religião), mas não tem o direito de se meter em aspectos da vida social em que indivíduo deve ter primazia (essa metade estaria representada no Brasil por gente como os economistas Rodrigo Constantino e Armínio Fraga, o articulista Reinaldo Azevedo e o Partido Novo). Como eu disse, as dimensões que dão origem a essa distinção são um pouco mais sutis. Mas, em resumo, entendo, sim, que elas permitem um modelo bem mais refinado para enxergar a realidade política e social do que a velha dicotomia direita/esquerda. E (assunto para outro texto) a existência dessa dicotomia não implica uma valorização moral, isto é, não implica necessariamente que um dos lados é o melhor ou o detentor da verdade universal. Isso porque frequentemente os princípios e dogmas que orientam essas visões de mundo são defendidos mesmo em afronta às evidências científicas. Para ficar em um exemplo, os poucos conservadores brasileiros têm defendido uma bandeira que foi religiosamente hasteada nos EUA por John Lott (baseado em dados cuja metodologia foi severamente questionada), que é o direito dos indivíduos portarem armas de fogo. Uma abordagem utilitarista (que é a que eu defendo em casos como esse), ancorada em evidências cuidadosamente estudadas, rejeitaria claramente essa medida. Volto, quando der, ao tema.