Lobos, ovelhas e cães

Li uma descrição de uma cena de um filme americano, em que se classificam as pessoas como lobos (más), ovelhas (covardes) e cães (boas). Eu acho que esse tipo de análise tem baixo poder explicativo da realidade. Foca nos indivíduos, mas ignora o poder avassalador (cientificamente comprovado por décadas de pesquisas em psicologia social) de fatores como (1) os sistemas de incentivos vigentes, (2) a brutal e ao mesmo tempo sutil pressão por conformidade existente em qualquer grupo social ou sociedade (casada com a necessidade também universal do ser humano de ser aceito e bem quisto), (3) a cultura organizacional, que dita o modo de ver o mundo, os valores, as práticas, favorecendo a ascensão em qualquer organização apenas de quem melhor a representa; (4) a possibilidade quase infinita de o ser humano construir sua realidade (tecnicamente o que se chama de construal) e, independentemente do caminho adotado, manter uma auto-imagem extremamente positiva. Toda vez que se ignoram os poderosíssimos efeitos, digamos, estruturais, sobre determinados comportamentos, cometemos o que se chama em psicologia social de “erro fundamental de atribuição”. Foca-se no indivíduo e esquece-se do que, por vezes, é o principal. Aquele motorista que não deixa você fazer a conversão pode ser um “lobo” (pode), mas pode ser um filho levando o pai doente pro hospital ou um profissional sob violenta pressão de stress. Isso, evidentemente, não é álibi para nada. É explicação, não é julgamento moral. O livre arbítrio permanece. O EFA, como é conhecido, é muito comum em sociedades ocidentais, em especial nos EUA, que tem uma cultura com um alto escore na dimensão de individualismo (versus coletivismo). Quem quiser saber sobre o campo conhecido como “ética comportamental”, que é um filhote da economia comportamental, há excelentes livros que condensam pesquisas científicas recentes e mostram que fatores estruturais são capazes de levar as pessoas, mesmo as mais corretas, a cometer desvios morais bastante graves.

Ingroup e outgroup

O ser humano tem um botãozinho interno muito poderoso, que tem sido acionado ao longo da História para o cometimento das piores atrocidades e que, no mundo contemporâneo, é muito acionado na esfera política. Quem é que não gosta de se associar com a tribo “certa”, de sentir aquele sentimento de superioridade moral em relação a “eles”? Um dos problemas que decorrem disso é que a maioria absoluta das pessoas não critica a sopa conceitual que lhe oferecem. Se a posição “x” é apoiada pelo partido de preferência, então ela é aceita acriticamente. O importante, nesses casos, é fortalecer o sentimento de pertencimento à tribo ideológica e esfregar na cara do outro o sentimento de superioridade moral.

Corrupção e EFA

Quando pensamos em corrupção, tendemos a achar que é uma questão individual, de caráter. Em muitos casos é, mas não em todos. Nós cometemos o chamado erro fundamental de atribuição – EFA. Nos esquecemos dos sistemas de incentivos implícitos e explícitos vigentes (por exemplo, a tentação de altíssimos valores) e de um motivo fundamental do comportamento humano, que é a necessidade de pertencimento e de aceitação (há um artigo clássico sobre o tema, de 20 anos atrás) – é o motivo que está por trás da internalização de qualquer cultura organizacional. É tão poderoso na medida em que sua influência não é consciente.

Por que nos compadecemos da morte de alguém famoso, mas ignoramos o sofrimento de vítimas abstratas?

São dois fenômenos complementares: um, o “identifiable victim effect”, faz com que nos compadeçamos de vítimas concretas, cujos detalhes são vívidos e conhecidos. Outro, o “psychic numbing”, faz com que vítimas genéricas e numerosas sejam vistas como mera estatística, fria. É uma característica da mente humana, por mais que gostaríamos que fosse diferente. Mas com consequências concretas na qualidade de vida da população mais pobre. Por exemplo, só na cidade de SP estima-se um déficit de 200 mil vagas em creches (um absurdo, um atentado contra o futuro dessas crianças, um descalabro por qualquer critério). Mas as mães, pobres, sem voz, não fazem passeata e o problema fica lá, “enterrado”, fora da agenda da mídia, fora da agenda política, fora da agenda pública.

Os efeitos negativos do rodízio de água

O que é melhor? Ter o rodízio de água 4 x 2 ou ter a escassez da água refletida no preço? O rodízio me parece uma solução pior. Quem pode está correndo feito louco para comprar caixas d’água adicionais. Vi a notícia de um restaurante no centro de São Paulo, que adquiriu uma caixa extra de 7.000 litros e, não tendo onde a colocar, estacionou-a no meio do salão. Li também que as vendas de caixas d’água explodiram nas lojas de materiais de construção. Se eu fosse uma indústria ou um agricultor que dependesse muito de água, estaria fazendo o mesmo. Estabeleceu-se uma verdadeira “tragédia dos comuns”, fenômeno em que a maximização do interesse individual é a melhor opção para cada agente econômico, às custas do bem comum. Está sendo favorecido quem pode mais, quem tem mais recursos. Sem água, muito provavelmente agricultores vão passar a recorrer a fontes suspeitas (como poços artesianos contaminados). Vai explodir a venda de utensílios de plástico (pratos, copos etc.), aumentando ainda mais a contaminação do ambiente. Os efeitos negativos são diversos e tendem a piorar a situação. O forte aumento de preços, que venho defendendo (em boa companhia, como a do ex-presidente da Sabesp Gesner de Oliveira), por outro lado, serviria para forçar indústrias a acelerar projetos de reúso da água, condomínios residenciais a implantar a medição individualizada (que hoje demora a se pagar) e todos os agentes a racionalizar de verdade seu consumo. Evidentemente, por meio do sistema de cobrança da empresa de água seria possível estabelecer aumentos diferenciados por faixa de renda, poupando um pouco os mais pobres. Mas o forte aumento de preços, refletindo a extrema escassez do recurso, tenderia a manter a água disponível para todos, causando, do meu ponto de vista, menos prejuízos à sociedade. Mais medidas são necessárias, em outras frentes (tratei de parte delas em artigo recente). Incomoda-me, como cidadão, que a emergência da situação não esteja sendo comunicada à população adequadamente. O cenário provável nos próximos meses é ainda mais sombrio do que a maioria das pessoas acredita. Pior ainda é ver o governador de outro estado recorrendo a um “espírito” para ajudar a resolver o problema.

Como vejo o “job crafting”

Esta semana dei um depoimento a uma conhecida revista sobre o conceito de “job crafting” (redesenho do trabalho), que eu havia mencionado, de passagem, em um capítulo de livro que escrevi.

Eu nem de longe sou especialista em gestão de pessoas. Faço doutorado em marketing social (Administração). Mas não deixo de refletir sobre o comportamento organizacional. Nós todos, via, de regras, estamos inseridos em organizações. Bom, explico abaixo como vejo o assunto (job crafting).

A concepção tradicional de trabalho é a de que ele é um conjunto fixo de “tijolinhos”, cada um representando uma determinada atividade operacional ou estratégica.

O conceito de job crafting implica deixar o profissional escolher ou criar uma parte desses tijolinhos. O conceito é neutro, isto é, o profissional pode ou não adotar tijolinhos de interesse da organização. O ideal é que adote e, para isso, a organização precisa estar preparada.

Além do risco de não favorecer atividades que sejam produtivas tanto para a organização quanto para o indivíduo, há outro risco quando o job crafting já existe, que é o de ele ser invisível para a organização. Isto é, além de não haver processos ou estrutura para lidar com ele, o sistema de incentivos (em especial os incentivos psicológicos e sociais) não o reconhece ou o desincentiva. Com isso, o profissional corre o risco de se desmotivar e voltar a executar o arroz com feijão, que não desperta suas paixões, motivos ou interesses. Não é à toa que o percentual de trabalhadores que se diz efetivamente motivado, mundo afora, é muito baixo.

Vejo um potencial enorme do job crafting para despertar motivos, paixões e forças pessoais. Toda organização tem desafios estratégicos e operacionais a serem enfrentados, para os quais as soluções tradicionais são bastante imperfeitas. A questão é que muitos desses desafios podem ser enfrentados de bom grado, quando se permite que as pessoas tenham algum grau de escolha em seu cardápio de atividades, de modo a dar vazão a suas paixões, interesses e motivos. Essas paixões muitas vezes são direcionadas para fora do ambiente do trabalho. Ou são sufocadas pelos incêndios do cotidiano organizacional e pelas caixinhas fixas do trabalho. O exemplo mais conhecido de solução para lidar com isso é o do Google e seus 20% do tempo de trabalho para atividades de livre escolha.

O conceito de job crafting acaba sendo plenamente aplicável quando ele está inserido em um contexto maior, em que as organizações se redesenham de fato para extrair o melhor das pessoas – uma necessidade nos dias de hoje, especialmente para quem depende de profissionais do conhecimento.

Eu não vejo, porém, o job crafting como panaceia para resolver todos os problemas de motivação. Vejo, por outro lado, que as organizações precisam de uma séria reforma se quiserem extrair o melhor das pessoas no século XXI. A professora de Harvard Teresa Amabile escreveu um artigo para a Harvard Business Review em 2011, comentando que nada poderia ser mais importante para os gestores do que extrair o melhor de sua equipe. Porém, até hoje a maioria deles trabalha com concepções incorretas do que motiva o ser humano, em especial trabalhadores do conhecimento. No Peter Drucker Global Forum de 2013, uma das principais conclusões foi a de que Drucker, se vivo, ficaria bastante decepcionado pelo fato de a ciência da Administração não ter encontrado ainda boas ferramentas de gestão para lidar com profissionais do conhecimento, o que era uma de suas principais preocupações.

O cenário ainda hoje, comentam pesquisadores da área, é de insatisfação. Eu me lembro de um estudo que saiu em 2013, divulgado pela Wharton, mostrando que quando os headhunter ligam, um número surpreendente de executivos respondem.

Pouca coisa é pior para as organizações do que funcionários que não têm ligação emocional com seu trabalho e com a organização. Por isso, entendo que 4 níveis que idealmente devem estar alinhados para o job crafting funcionar bem:

– Nível global. O que a professora (Harvard) Rosabeth Moss-Kanter chama de lógica institucional. Segundo ela, as organizações só vão prosperar no longo prazo se se reinventarem, baseando a gestão em valores, fornecendo propósito a seus profissionais, inserindo-se na esfera pública, confiando em seus profissionais (o que implica profunda revisão de estruturas e processos, sem falar de cultura), sem se submeter a visões de curto prazo, cuidando dos objetivos financeiros, mas sem se subordinar a eles. Nesse nível também está inserida a cultura organizacional – os valores e crenças mais profundas de qualquer organização, que influenciam todos os demais níveis abaixo.

– Nível da arquitetura organizacional. Outra das conclusões do Peter Drucker Forum foi a de que as hierarquias estão com os dias contados. Elas são uma solução muito imperfeita para as organizações lidarem com seus desafios internos e externos. John Kotter (Harvard) defende o conceito de sistemas operacionais duplos, em que uma outra estrutura, não hierárquica, é criada para lidar com esses desafios. Nada mais apropriado para o job crafting.

– Nível da gestão de desenvolvimento profissional. Os processos, estruturas e sistemas de incentivos precisam estar preparados para o job crafting.

– Nível da equipe. Evidentemente, o profissional pode sempre, individualmente, buscar novas atividades para seu cardápio, negociando com seu líder. Idealmente, o conceito de liderança compartilhada e seguimento ativo (active followership, proposto pela professora de Harvard Barbara Kellerman) casa bem com o job crafting. Isso implica o questionamento e a revisão do modelo “comando e controle” ainda vigente na maioria absoluta das organizações.

O conceito de job crafting casa muito bem ainda com o conceito de cidadania organizacional – a disposição de dar um algo a mais, de “vestir a camisa”, como se dizia antigamente.

Mas job crafting tende a não ser para todo mundo. Tende a ser mais favorecido para profissionais como uma orientação motivacional intrínseca (é o que diz a literatura). Isto é, pessoas automotivadas. Sua gestão também tende a ser um pouco mais complexa do que as aparências iniciais indicam. Como outras pessoas enxergam aqueles que o praticam? (isso tende a evocar questões de justiça organizacional, por exemplo) A cultura organizacional o favorece?

Enfim, uma parte considerável dos profissionais, em organizações públicas e privadas, vai exigir cada vez mais propósito, significado, perspectivas de crescimento profissional etc. O paradigma mudou. Mas muitas organizações ainda estão presas à visão, muito bem sintetizada pelo linguista George Lakoff, que o trabalho é meramente um tipo de atividade que é independente de quem o executa, de qual significado ele agrega à vida do trabalhador e da satisfação ou insatisfação que ele traz.

A Amy Wrzesniewski (Yale), especialista em job crafting, diz que para o profissional começar a difunfir a ideia na organização ele precisa focar em criar valor para os outros, construir confiança e identificar em quem vai apoiar sua iniciativa. Eu diria que o primeiro passo, como quase sempre, é difundir o conceito. A concepção tradicional de trabalho ainda ocupa corações e mentes da maioria dos gestores.

On the verge of a collapse?

A modern phenomenon is the increasing cost and sophistication of events and mundane products. For example, before the existence of the now ubiquitous children’s “buffets” in Brazil (places where parents celebrate the birthday of their kids), birthday parties used to be a simple combination of best friends, a cake and homemade sweets. I do not remember at what time the “buffets” have become so prevalent in Brazilian cities. Maybe from fifteen years on. What I do know is that in affluent neighborhoods of the city of São Paulo a birthday party hosted at such place, lasting around 4 hours, easily exceeds the cost of R$ 10,000 (US$ 4,000) – a huge figure by Brazilian standards (compare it to the average of £ 300 in UK…) (click here to continue)

Racionamento de água ou aumento de preço?

Entendo que é um erro o racionamento de água anunciado pela Sabesp, cortando a água por 5 dias da semana. Criou-se um incentivo à aquisição de caixas d’água adicionais. Uma boa parte da economia de consumo pretendida tende a ser anulada pela antecipação de demanda representada por essa expansão do armazenamento doméstico. Isto é, a água que deveria estar na represa vai migrar para as novas caixas d’água que serão adquiridas não apenas por residências, mas também por comércios, indústrias e produtores rurais. Do ponto de vista individual, a aquisição de caixas d’água com maior capacidade é a melhor estratégia a ser seguida diante da possibilidade de ficar 5 dias por semana sem água. O tiro tende a sair em parte pela culatra. Muito melhor seria o choque de preços (em conjunto com outras medidas), como comentei neste artigo aqui.

O consumismo nosso de cada dia

Um fenômeno moderno, que vem se acelerando nos últimos anos, é o crescente custo (e sofisticação) de eventos e produtos do dia a dia. Por exemplo, antes da moda dos famigerados buffets infantis, as festas da criançada tipicamente envolviam chamar os melhores amigos para uma festinha simples com bolo e brigadeiro caseiros. Não me lembro em que momento os buffets passaram a ser tão presentes nas cidades brasileiras…. Leia o artigo completo aqui.