Educação e “meritocracia”

Meritocracia?

Há alguns problemas com a abordagem para a educação baseada na formula simplista de bonificação baseada em resultados de exames. Não podemos confundir meritocracia com essa fórmula. Sim, existe enorme resistência cultural ao mérito no Brasil. Aqui há uma indisfarçável predileção por relações de compadrio e por uma falsa isonomia. Mas esse debate merece argumentos melhores e o assunto precisa ser debatido de forma menos ideológica.

Consideremos um programa conhecido nos EUA. Os efeitos do programa americano No Child Left Behind, baseado no novo taylorismo (currículos padronizados, aulas cronometradas etc.), são apenas mistos (funcionam – limitadamente – em alguns aspectos, em outros não) e nem de longe resolveram os problemas que o programa se propôs a atacar. Há diversos efeitos negativos decorrentes de programas simplistas, focados apenas em incentivos financeiros: foco apenas nos alunos mais promissores, educar apenas para tirar nota nos testes, gaming (manipulação) e outros. Educação é isso?

Irrita-me quando alguém carimba quem questiona esse modelo raso como um inimigo da meritocracia. Meritocracia é muito mais do que pagar 1,5 salário a mais para o professor que consegue algum resultado em um exame padronizado. Formação de capital humano e aumento da produtividade de um país envolve muito mais do que isso. A Finlândia se tornou um dos países de melhor resultado no PISA investindo em outra receita, que é bem mais trabalhosa: a incrível formação do capital humano de seus professores e a aposta nos motivadores nobres do comportamento humano, como a autonomia (autonomia, não custa destacar, não significa fazer o que se quer, sem regras). O país dispensou as receitas prontas de “meritocracia”. E seu resultado excepcional na última década não é explicado por sua cultura de influência nórdica: a Suécia e a Noruega ficam bem longe no ranking do PISA, por volta da posição 20 em diante.

Essa discussão da educação é importante para outros servidores públicos, porque as receitas utilizadas são as mesmas. Mas, reparem, não se trata de abolir testes ou de não fazer avaliação de desempenho dos professores. Testes são necessários na medida em que têm um valor de informação e feedback. Devem ser utilizados com a função de aprendizado. Até na Finlândia eles existem, claro. Não se trata de jogar fora ou ser contra qualquer medida de avaliação. O problema é jogar no lixo o balanço desejável entre duas forças importantes no contexto educacional. Essas forças às vezes são contraditórias, mas nem sempre: a necessidade de comprovar conhecimento em testes versus a necessidade de ter sucesso em outras dimensões da educação (aprender a aprender, aprender a ter persistência e enfrentar frustrações, aprender a aplicar os conhecimentos em outros contextos).

No caso da avaliação de desempenho dos servidores, entendo que ela precisa existir, mas não nos moldes tradicionais (e altamente criticáveis) das empresas privadas, algo que a academia e grandes consultorias já reconhecem que não funciona. Ela precisa ter foco em desenvolvimento pessoal a partir das forças individuais. Isto é, trata-se de buscar a evolução profissional e não fazer ranking para recebimento de bônus. A evidência científica mais recente mostra que é muito mais factível mudar as pessoas atuando em suas forças pessoais. Metas e avaliação de desempenho podem existir em um modelo humanista, mas com outro foco. O problema é que esse modelo importado dos EUA é tudo, menos humanista. A literatura científica em motivação é clara ao mostrar que incentivos financeiros calam e apagam a motivação mais nobre (intrínseca) das pessoas. Fico muito preocupado quando isso é utilizado em contextos como o educacional, em que a motivação principal dos profissionais tende a ser justamente a intrínseca. Ainda pagaremos muito caro se isso se alastrar. Preocupa-me, claro, a questão da produtividade brasileira. Mas entendo que esse caminho da fórmula “meritocrática” baseada em bônus é o menos promissor.

Por fim, entendo que maus profissionais (aquela minoria que entrou no serviço público procurando não fazer nada, amparada em uma crença que nunca fez sentido), que destroem um ambiente de justiça no contexto de trabalho (pois os mecanismos de punição são emperrados), devem ser sim identificados em instrumentos de avaliação de desempenho e sujeitos, primeiro a uma reciclagem (uma segunda chance) e depois à demissão, respeitados, claro, os devidos procedimentos legais. Em resumo, o que eu defendo é um modelo voltado a possibilitar a expressão do melhor das pessoas sem descuidar de aspectos importantes, como avaliação e indicadores de progresso reais. Mas esse modelo que vem se expandindo quase como um câncer na administração pública brasileira é tudo menos isso. E ele só se expande porque superficialmente faz sentido, ainda mais embalado por uma bandeira e um rótulo “nobre” de meritocracia. Gerenciar pessoas para atingir o desempenho máximo é complexo, mas possível. Balas de prata, em especial as baseadas em dinheiro, geralmente não resolvem problemas hipercomplexos como esse.  Outros problemas sociais importantes seriam mais fáceis de serem resolvidos se isso funcionasse. A evidência vem mostrando o contrário.