O incrível protesto das mães sem creche

Alguém viu a incrível passeata das mães sem creche na cidade de São Paulo? Não viu e não verá: esse protesto tem chance quase nula de acontecer. Mas imagine, leitor, por um momento, uma multidão de mães trabalhadoras, marchando de todas as periferias da cidade, em direção à Avenida Paulista, carregando nos ombros seus filhos e seu cansaço. Imaginou?

Em meio a um inacreditável inabilidade de comunicação dos governos estadual e municipal (mais sobre isso adiante), a cidade de São Paulo vem vivendo alguns momentos Woodstock. Sensibilizados por cenas e relatos de agressões de policiais a jornalistas e manifestantes, motivados por uma sensação difusa de insatisfação contra governos em geral, muita gente vem engrossando as fileiras de manifestantes, para protestar “contra tudo”. Atores e várias pessoas famosas fazem questão de estar presentes em eventos que, como gostam de dizer os marketeiros, “viralizaram”. Mas alguém viu as mães sem creche na multidão?

Contra o que vem protestando tantos cidadãos, a maior parte, ao que parece, composta por pessoas bem intencionadas? Os protestos iniciais foram realizados contra o aumento nas tarifas do transporte coletivo. Aumento de preço é sempre impopular, mas há um elemento pouco discutido que estava embutido na demanda inicial (anulação do aumento ou mesmo transporte “gratuito” para todos). Esse elemento é o subsídio existente atualmente para o transporte público. Subsídio é dinheiro público. Aplicação de dinheiro público é resultado de priorização. Mas o que tem as mães sem creche a ver com isso?

Os protestos evoluíram do tema transporte público para um festival de temas genéricos: no grande protesto de 17 de junho, participantes brandiam cartazes e frases contra a corrupção, a favor da paz, a favor de um país melhor, contra os governos e outros mantras genéricos. É verdade que uma miríade de temas mais concretos também fez parte dos motivos, cartazes e bandeiras. Mas essa falta de foco e o agrupamento de temas desconexos são pouco produtivos. De um lado, temas genéricos tendem a ter a concordância de todos: até corruptos e assassinos tendem a apoiar sua versão de paz e de honestidade. De outro lado, quando o protesto é contra tudo, ele se torna um protesto contra nada. Essa falta de foco é provavelmente reflexo de uma democracia pouco praticada e da imaturidade política típica de países subdesenvolvidos. No Brasil não há mecanismos sociais que canalizem os movimentos de indignação, hoje frequentemente restritos à Internet. Os partidos políticos no Brasil são arremedos de instituições. Não há espaço real e organizado para discussão de ideias e para formação de lideranças orientadas para um propósito maior: o desenvolvimento social e econômico do país. A política é, via de regra, caminho para enriquecimento ilícito e manutenção de privilégios. Mas o que as mães sem creche tem a ver com isso?

Parece haver uma crença em alguns setores da sociedade de que os recursos públicos são infinitos. Não são. Os protestos iniciais defendiam a “gratuidade” nas passagens. Ora, gratuidade é um conceito que, em se tratando de políticas públicas, não existe. Alguém sempre paga o custo. Nem mesmo a chamada “meia entrada” é meia: o subsídio recai nas costas da minoria que paga ingresso integral (veja mais aqui). Governar é fazer escolhas. Quando os governos priorizam determinadas áreas, outras serão necessariamente menos atendidas, porque o orçamento e os recursos são finitos. Segundo dados divulgados pelo prefeito Haddad, o custo da “gratuidade” das passagens de ônibus bateria nos R$ 6 bilhões anuais. De onde sairia esse dinheiro? Que área deixaria de ser melhor assistida? Algum manifestante (ou seus pais) estaria disposto a triplicar ou quadruplicar seu IPTU (que já cresceu muito em termos reais nos últimos anos por conta da bolha imobiliária) para fazer frente a esse gasto? A arrecadação total do IPTU em 2012 não pagaria a totalidade dos subsídios para um transporte público “gratuito” para todos e qualquer aumento de arrecadação não gera recursos livres, por conta de vinculações obrigatórias. Seu IPTU teria mais do que dobrar para dar conta de tamanho subsídio.

De onde sairia o dinheiro? A pergunta principal nem é essa. A pergunta correta é: que área teria seus recursos diminuídos para aumentar o subsídio ao transporte público? Se os manifestantes estão preocupados com as condições sociais dos trabalhadores, deveriam prestar atenção a alguns problemas ainda mais graves. Aqui voltamos a tratar das mães sem creches. Poucos problemas tem consequências tão desumanas quanto a falta de vagas em creches municipais. O déficit de vagas em creches, para crianças de 0 a 4 anos, equivale a 111 mil vagas, de acordo com essa reportagem recente do Estadão. O governo municipal anterior estimava zerar o déficit apenas em 2020. Considerando um custo por criança de R$ 10 mil (estimado a partir da informação dessa reportagem), zerar o déficit implica um custo aproximado de R$ 1,1 bilhão, apenas com a construção das creches, sem considerar sua custosa operação. É o mesmo valor, em termos aproximados, do subsídio já existente do transporte municipal. Governar é fazer escolhas. Se você, leitor, tivesse de escolher, e considerando o cobertor sempre curto do orçamento, para que área você daria prioridade?

Assisti hoje, com preocupação, notícia indicando que o prefeito Haddad cogita anular o aumento de tarifa do transporte. Isso implica aumentar o subsídio. De que área social esse dinheiro será tirado? Onde está a racionalidade nisso tudo? Quando analisamos políticas públicas, tendemos a considerar apenas as consequências das ações. Como lembra o pesquisador americano Jonathan Baron, sofremos de um viés de omissão. As consequências das ações não tomadas não costumam entrar na nossa análise. Deixar de construir creches tem uma boa probabilidade de não incomodar a sociedade, ainda que as consequências sejam cruéis.

Para terminar, gostaria de abordar o que eu vejo como falhas gritantes de comunicação do governador e do prefeito. Comecemos pelo segundo.Onde errou Haddad? Errou ao não explicar a que equivale o custo de R$ 6 bilhões. Números abstratos comunicam muito pouco. O valor, diga-se,corresponde a 5 estádios do Maracanã por ano. São Paulo não conseguiu nem zerar o enorme déficit de vagas em creches. Como visto acima, o que falta para construir as creches está na mesma escala de valores do que a prefeitura de São Paulo já gasta atualmente com os subsídios ao sistema de transportes públicos.

Onde errou Alckmin? Errou ao não comunicar de forma consistente uma mensagem clara: protestos fazem parte da democracia, mas vandalismo não. Destruir bens públicos é agredir a população. Além disso, o governo paulista, ao não se preparar para situações como o descontrole policial, passou de potencial vítima (por conta das depredações, que sumiram da narrativa) para algoz. Esse tipo de situação provavelmente seria identificada caso o governo paulista utilizasse uma técnica conhecida como pré-mortem, desenvolvida pelo especialista em experts e consultor Gary Klein (nesse link você lê mais sobre pre-mortem).

Um ponto importante, que eu deixo para sua reflexão: Até quando vamos tolerar interdições por protestos no eixo da Avenida Paulista, importante corredor para diversos hospitais públicos e privados? Espero que você, leitor, nunca precise depender da boa fluidez do trânsito para atendimento de uma emergência médica. A sensação é desesperadora. Vamos esperar alguém morrer sem atendimento porque ficou preso no trânsito para repensarmos a ocupação de tão importante espaço público?